quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Despedida insólita

Vamos morrendo aos poucos sem perceber, nos despedindo de nós mesmos sem sentir muito pesar. Sem uma despedida funebre, sem lágrimas ou honras para o que se vai de nós.
Aos sete ou oito anos lá se vão os dentes de leite, algumas mães os exibem no pescoço como pingente de um colar de ouro, mas para a maioria o destino é o lixo ou o ralo do banheiro mesmo.
Mais tarde, depois de muitas inflamações, lá se vão as amigdalas.
Devido a umas peripécias de criança e pré-adolescente, uma queda ou um acidente e lá se vãos os dentes permanentes da frente, totalmente esmigalhados.
Depois, com um pouco de falta de sorte, lá se vai a visícula.
E antes que você possa imaginar a respeito, parte do seu estômago se vai para que você possa ter uma melhor qualidade de vida com um peso mais baixo. Tendência que tem se popularizado tanto quanto a quantidade de cirurgias desse tipo.
Aí, graças a genética e a pele super branca, aparece o cancer de pele, que aos poucos leva pedaços da pele para a lixeira.
Você já pensou na quantidade de sangue que já saiu de você para os "N" exames que os médicos te obrigam a fazer? nas minhas contas daria para eu trocar o sangue do meu corpo todinho!
E quando o menisco (parte do joelho) se deteriora e você é obrigado a se desfazer dele? Quando um osso é substituido por um pino, um dente trocado por uma prótese de porcelana. Quando uma perna é constituida de uma prótese. Quando um braço já não existe mais, e tudo o que resta são as sensações tais como se ele ainda fizesse parte do corpo. Quando um olho não cumpre a sua função e muitas vezes também nem serve de enfeite e é substituido por outro de vidro. Quando parte da lingua se perdeu por uma doença ou um acidente de carro.
Você se despediu de suas partes perdidas, das partes que morreram; daquelas, que deveriam, mas não te acompanham mais?
Você se despediu de você mesmo? Seguiu um rito funebre? Enterrou suas partes? Fez uma lápide para cada parte que se foi? Teve uns minutos a sós com você mesmo e suas partes? Não. Geralmente elas se vão e nem as vemos mais. A nossa relação conosco mesmo é de desprezo, de ignorância no que nos diz respeito. A sensação de perda do ser humano é tão grande que ele mesmo não suportaria ver uma parte de si indo para o lixo, não suportaria enterrar uma parte de seu próprio corpo, porque o fato de ter que se desfazer de si mesmo é totalmente insólito e despresível.
Como é possível ao ser humano deixar que uma parte de seu corpo se vá, se acabe antes mesmo que ele pare de respirar? Sim, é inaceitável em um primeiro momento, mas essas coisas acontecem com muito mais frequência do que imaginamos.
A medicina permite que coisas desse tipo sejam feitas com a maior tranquilidade, e cada vez mais com muita naturalidade. Os médicos se encarregam de descartar as partes que não servem mais ou são dispensáveis ao ser humano, são eles que tornam a perna aceitável e tranquila. A medicina evoluiu nisso tudo com o princípio de aliviar a dor, o peso e trazer maior conforto ao indivíduo que precisava se desfazer de alguma parte do corpo que não poderia continuar existindo ou que já não atuava como deveria. Porém a evolução trouxe consequencias maiores e hoje já é possível se desfazer até do que não está danificado no corpo humano, e aí surgiu a cirurgia estética.
Muitas pessoas saudáveis se submetem à procedimentos onde costelas são retiradas, peles são cortadas, gorduras sugadas, seios fatiados, rostos puxados e esticados, plásticos inseridos no corpo, tudo em nome da beleza e da sensação de poder sobre si mesmo. Nesses casos as pessoas que se submetem a isso tratam as partes excluidas de seus corpos como a um inimigo, ou seja, não veem a hora de se verem livres delas. Querem se separar e não querem ter notícia nunca mais, tanto quanto os casais que tem um divórcio litigioso. Agem como se tivessem nascido com algo extra que pode ser retirado a qualquer momento, é como se no corpo humano existissem coisas dispensáveis, como se a natureza não fosse perfeita.
Choramos pelos amigos que se vão, queremos ir junto com os nossos pais quando eles morrem, choramos pelo sobrinho, pelo filho, pelo marido, pelo vizinho, até por aquele menino que vivia na rua e quem nem sabemos o nome direito ou de onde ele é, mas esquecemos de chorar por nós mesmos.... por cada parte, tecido, gota de sangue que se esvai de nós.... partes de nós mesmos que estão morrendo antes que o façamos. Nem nos lembramos dessas partes em nosso dia a dia, ou no dia dos mortos, porque jamais vamos nos considerar mortos por partes ou em parte mortos.
A morte é o maior tabu do ser humano, e imaginar que isso esteja acontecendo a nós em vida é inimaginável apesar de ser a realidade.
Tenho comigo aquele ditado que diz que "assim que nascemos começamos a morrer". Faz todo o sentido para mim.
Não há creme rejuvenescedor, pomada, aplicação, cirurgia, creme de hidratação que nos livre de morrer um pouco todo dia, envelhecer.
Por isso é fundamental que nos despeçamos de nós mesmos todos os dias... não com pesar, mas com a certeza de que utilizamos cada parte do nosso corpo da melhor maneira possível e a tratamos com carinho e atenção merecida em cada momento que estiveram conosco, numa despedida insólita.